terça-feira, 25 de maio de 2010

Entrevista em 2000




É bonito sentir-se um cidadão do mundo" (Mario Botta)




No início dos anos 70, Mario Botta assombrou, com sua obra, os apreciadores da arquitetura de todo o mundo. Com o fim do modernismo e o avanço do pós-moderno, os trabalhos de Botta jogaram luz sobre os possíveis rumos da arquitetura. O arquiteto acabou se tornando uma celebridade, com projetos espalhados por diversos países e monografias publicadas sobre sua obra. Bem-humorado, de raciocínio rápido e inteligente, Botta concedeu esta entrevista em junho de 2000, durante visita a São Paulo.

Você trabalhou com arquitetura antes da faculdade, não?
Em 1958, com 15 anos, abandonei os estudos secundários e comecei a trabalhar como desenhista, no escritório de Tita Carloni e Luigi Camanish, dois importantes profissionais da região do Ticino. Essa foi minha sorte: só depois dessa experiência é que fui estudar arquitetura. Acreditava que, antes de cursar a faculdade, tinha que trabalhar em um bom estúdio. Na época de sua formação, não existia escola de arquitetura em sua região de origem. A maioria dos estudantes preferia cursar arquitetura na Escola Politécnica de Zurique a ir à Itália, pois teriam problemas legais para trabalhar na Suíça. Os que escolhiam a Itália, em geral, iam a Milão.
Por que sua opção por Veneza?
Por duas razões: pela cultura italiana e por Veneza em si. Interessava-me viver em uma cidade como essa. A outra alternativa era, de fato, Zurique, que não me agradava.
Essa escolha também foi motivada pelos professores de Veneza?
Realmente era uma boa escola, mas em princípio eu não a conhecia, nem seus professores. Havia nomes como Carlo Scarpa, Ignazio Gardela e Leonardo Benevolo. Era uma equipe docente brilhante, naquela época. Mas foi sorte minha; não sabia disso antes de entrar lá. Durante sua temporada em Veneza, o senhor chegou a trabalhar com Le Corbusier.

Como foi essa experiência?
Foi um presente propiciado por Veneza. Quando cheguei à cidade, havia nela três pontos de referência: Carlo Scarpa, que residia lá e era professor; Le Corbusier, que fazia o projeto para um novo hospital, seu último trabalho; e mais tarde, em 1969, Louis Kahn, que desenvolvia o projeto do Palácio do Congresso. Para mim, Veneza, com a presença deles, apresentava-se como uma situação particular.

O senhor poderia falar, mais especificamente, sobre seu trabalho com o mestre franco-suíço?
Foi o último projeto de Le Corbusier, e ele era muito franco, muito amargo durante o processo. Não trabalhei diretamente com ele, mas com seus colaboradores. Eu desenvolvia as plantas em escala 1:500 e participava das reuniões com os médicos. Havia um escritório em Veneza montado para esse projeto. Depois, em setembro de 1965, um mês antes de morrer, ele me convidou para trabalhar em seu famoso escritório da rue Sevrès, em Paris. Fui um mês depois. Cheguei à França justamente quando ele tinha acabado de morrer. Foi uma situação muito triste, mas, ao mesmo tempo, interessante. Era como o funeral da arquitetura moderna. Passavam por lá grandes personagens, como Josep L. Sert, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, entre outros. Passei o inverno de 1965 trabalhando em Paris no projeto para Veneza, que foi muito modificado.

O senhor chegou a trabalhar com Le Corbusier?
Eu o conheci em Veneza, mas não em sua mesa de trabalho.
E com Louis Kahn?
Com Kahn foi diferente. Ele foi a Veneza em 1968 para fazer o projeto do Palácio do Congresso. Eu era amigo de Bepi Mazzariol, que era o responsável pelo levantamento de dados para o projeto, e atuava como seu auxiliar. Enquanto ele estava na Filadélfia, eu ajudava, mandando dados, materiais etc. Quando Kahn veio trabalhar em Veneza, fiquei um mês com ele em um pequeno estúdio no Palácio Ducal, antes da apresentação do projeto, fazendo maquetes. Esse foi um trabalho direto.

E como ele era?
Um homem messiânico! Sempre atrás da origem dos problemas. Não o interessavam as soluções predeterminadas, mas descobrir os problemas. Para mim, foi um encontro determinante. Seu projeto de conclusão de curso na faculdade continha conceitos muito próximos dos que o senhor emprega até hoje.

Ali já estavam claras suas características de arquiteto?
Não creio. Terminei a escola com muito entusiasmo e tive a sorte de já haver trabalhado. Logo após a conclusão do curso, Kahn me convidou para trabalhar com ele em Dacar, no Senegal. Não aceitei. Preferi iniciar minha carreira com uma pequena obra de restauro na casa de um amigo, como a maioria começa. Não tinha relações políticas, nem econômicas. Era apenas um garoto do campo.

Essa casa foi publicada?
Sim, em uma edição com minhas obras completas.

Mas seu trabalho já mostrava maturidade desde o início?
Creio que ele possui uma continuidade. Em Veneza, abordavam-se os problemas da cidade, do território. Em Zurique, não havia essa discussão. Eu era jovem quando iniciei minha carreira profissional, e comecei junto à então nova geração do Ticino, com Tita Carloni, Aurelio Galfetti, Luigi Snozzi. Trabalhávamos com uma dimensão nova, para nós era uma descoberta, uma questão de conhecimento arquitetônico, não só de experiência. Por isso, a escola de Veneza teve importância fundamental para mim.

E a escola de arquitetura no Ticino que o senhor está coordenando?
A proposta parte de uma idéia muito simples: a base dessa escola está sendo criada para responder à complexidade do moderno e sua velocidade de transformação. Para os arquitetos, é muito importante ter boa formação em disciplinas da área de ciências humanas e não somente em matérias técnicas. Começamos a ensinar filosofia, história, teoria, ou seja, uma série de elementos que possibilitam analisar o projeto de forma crítica. Uma escola que permite descobrir a origem dos problemas em vez de simplesmente dar soluções prontas. A proposta parte de projetos e sua centralização, para criar elementos críticos.

De certa forma, ela é parecida com a que estava estabelecida em Veneza?
Há uma evolução, pois, afinal, faz 30 anos! Atualmente, existem outros problemas, com maior diversidade. Nossa proposta é de uma escola de reflexão crítica, diante da grande complexidade do mundo atual. A arquitetura suíça passa atualmente por fase atípica.

Como pode um pequeno país, com poucas escolas de arquitetura, ter tamanha diversidade na produção, especialmente dos arquitetos dos cantões alemão e italiano?
Isso faz parte das diferentes culturas da Suíça, não é de forma nenhuma negativo. Em uma comparação específica entre essas duas regiões, acho que a Suíça italiana deve guardar a Itália, deve nutrir-se da Itália, redescobrir sua natureza mediterrânea, latina. Sua reflexão crítica é mais forte se comparada ao pragmatismo alemão, ao qual deve se contrapor criticamente. Nesse sentido, a escola que estamos criando no Ticino é muito internacional. Temos professores de todo o mundo - porque o arquiteto é um cidadão do mundo e deve propor a arquitetura como testemunho crítico da sociedade, da qual é um reflexo. Mas não anônimo: é um reflexo capaz de determinar as coisas, corrigir. Não pode mudar a sociedade, mas pode mudar a arquitetura.

E, enquanto cidadão do mundo, como fica a situação do arquiteto? Como pode fazer um edifício em outro continente sem perder o controle da obra?
Isso não é negativo, tampouco novo. Um arquiteto do Ticino pode trabalhar na Califórnia, construir em São Petersburgo ou em Moscou. Trata-se da migração cultural, que não é um problema atual, já acontecia no passado. A história da Suíça é uma história de migrações. O problema é que, quando se vai trabalhar sob novas condições, é possível ter o saber global, mas com uma identidade local. Creio que uma arquitetura não pode ser anonimamente cosmopolita. A realidade se liga a um território, a um lugar, a uma história e uma memória, que são importantes. Ou, em outros termos: tenho convicção de que o território em que trabalha o arquiteto é o da memória. Não é o do futuro. Na realidade, continuamos a reler criticamente o passado. Isso é muito importante. Como fez Picasso, Henri Moore ou Paul Klee, retornando sempre a um pedaço da história da humanidade na Terra. Tudo isso para ver se resistimos à folia do mercado, do consumo e do moderno. Sua obra, quanto ao mercado e comparada às dos outros arquitetos do Ticino, é muito mais conhecida... Quanto a isso, não posso dizer nada. Tive outras oportunidades, comecei a trabalhar muito cedo e tive a sorte de conhecer grandes mestres. Ou seja, uma série de circunstâncias que me favoreceram. Eu posso trabalhar no mundo, fazer uma igreja, uma sinagoga. É bonito sentir-se um cidadão do mundo.

Texto resumido a partir de reportagem de Aldo Urbinati e Fernando Serapião
Publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 248 Outubro 2001

Nenhum comentário:

Postar um comentário